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Reflexões

Cláudio Torres - "Património e Desenvolvimento"

Cláudio Torres - "Património e Desenvolvimento"Saída do anonimato, a vila de Mértola tem vindo a ser alvo de uma experiência que, embora alongada no tempo, permite já fazer um balanço positivo. Os benefícios têm vindo a tornar-se evidentes para a comunidade e os turistas que em número crescente nos visitam anualmente, têm a agradável surpresa de encontrar locais de interesse espalhados pelo interior do povoado e em circuitos culturais nas imediações.

A nossa intervenção em Mértola começou com a arqueologia, com uma arqueologia que, embora tivesse partido naturalmente de uma abordagem puramente universitária, muito cedo foi desviada para objectivos didácticos. Até então, o programa contava apenas com o trabalho voluntário e sazonal de uma equipa de voluntários, composta por alunos da Faculdade de Letras de Lisboa e que, de férias ou ao fim-de-semana iam fazendo intervenções no terreno, a fim de poderem retirar alguma informação. [...] Este movimento cíclico, de gente com outros hábitos e cultura que, de uma forma geral, não demonstrava o mínimo interesse em satisfazer a curiosidade das pessoas da terra, criou localmente uma certa estranheza, quando não uma quase completa indiferença.

Por isso, de muito cedo, logo nos primeiros anos, tentámos proceder de forma diferente. Desde os primeiros contactos com Mértola e por razões também de identificação política, sentimo-nos envolvidos na vida e interesses da comunidade. A escavação decorria no interior do aglomerado no local tido pelos habitantes como o seu ponto de referência colectiva, a sua alma comunitária - o castelo e toda a sua envolvência directa. Ao escavar no castelo, estávamos forçosamente a tocar no mais profundo da comunidade, despertando natural e inevitável curiosidade.  No decorrer das primeiras campanhas, aprendemos a justificar o nosso trabalho, ouvindo os comentários e, sempre que possível, a encontrar consensos.

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Cláudio Torres - "A Mesquita de Mértola"

Cláudio Torres - "A Mesquita de Mértola"A igreja matriz de Mértola, no seu insólito perfil mourisco, esconde as memórias de um templo romano, de uma outra igreja mais antiga e sobretudo de uma mesquita que foi casa de oração muçulmana até 1238, quando os cavaleiros da Ordem de Santiago a colocaram ao serviço dos vencedores. A mesquita, construída em época almóada, na segunda metade do século XII, é o único templo muçulmano do território português ainda reconhecível na sua volumetria e elementos decorativos. Era um edifício de 5 naves cada uma coberta por um telhado de duas águas cujo madeiramento assentava em fiadas de 6 colunas. Da antiga mesquita chegaram até nós quatro portas de arco ultrapassado e o altar muçulmano ou mirhab virado para Meca e que mantém a decoração original.

No acto da conquista, e para marcar a diferença, o altar cristão foi montado na parede norte do templo onde ficou até às remodelações dos anos trinta do século XVI quando grandes obras levaram à cobertura de todas as naves por uma sequência de abobadas nervuradas. Curiosamente, nessa altura a população da vila pede ao rei que a mesa de altar regresse ao sítio do mirhab, mostrando claramente que ainda não se perdera a memória do antigo local sagrado muçulmano. Umas décadas mais tarde, a Inquisição ordena que o mirhab seja entaipado e que o local da liturgia cristã regresse à parede setentrional, onde ficou até ao século XX quando a Direcção dos Monumentos Nacionais desentaipou as portas e voltou a colocar o altar na sua antiga localização.

António Borges Coelho - "Sobre Mértola e o Guadiana"

António Borges Coelho - "Sobre Mértola e o Guadiana"1. Mértola lava os olhos no rio, hoje como há dois milénios, embora não seja possível, como disse o grego Heraclito, banhar as mãos duas vezes nas mesmas águas que correm. Hoje, como há dois milénios, o rio alteia ou recolhe o seu curso ao ritmo das marés. Solhos e golfinhos frequentavam as suas águas e ficaram gravados nas moedas de Myrtillis. No século XVIII, sáveis, safios, lampreias, muges, robalos, sabogas, picões, barbos e outras espécies acudiam às redes dos pescadores. As águas do Guadiana curavam os <afectos melancólicos> e humedeciam muito as entranhas. Até os gados que bebiam as suas águas eram mais gostosos, como escreveu em 1758 o pároco de Mértola, Bento José Sevilha. Já Duarte Nunes de Leão, antes dele, elogiara o sabor do gado grosso que pastava nas suas margens.

2. O Guadiana é o mais mediterrânico dos rios que correm em Portugal. Significativamente recebeu o nome de duas civilizações que marcaram profundamente a sua bacia hidrográfica. De Roma nos chegou o nome Anas, a que os árabes juntaram ued ou rio, soando nos falares medievais como Odiana e nos nossos Guadiana. A vasta região da sua bacia hidrográfica conheceu por ventura então o seu máximo desenvolvimento relativo. A entrada liquida   abria-se em entradas terrestres, aberta em linha horizontal ao mar. E ergueram-se cidades sobre antigos povoados ibéricos: Mérida, a belíssima capital da Lusitânia, Beja e Mértola por onde passou Júlio César; e outras cidades e vilas. Nesses tempos o rio não separava, unia.
(in Arqueologia Medieval, nº 1)