Saída do anonimato, a vila de Mértola tem vindo a ser alvo de uma experiência que, embora alongada no tempo, permite já fazer um balanço positivo. Os benefícios têm vindo a tornar-se evidentes para a comunidade e os turistas que em número crescente nos visitam anualmente, têm a agradável surpresa de encontrar locais de interesse espalhados pelo interior do povoado e em circuitos culturais nas imediações.
A nossa intervenção em Mértola começou com a arqueologia, com uma arqueologia que, embora tivesse partido naturalmente de uma abordagem puramente universitária, muito cedo foi desviada para objectivos didácticos. Até então, o programa contava apenas com o trabalho voluntário e sazonal de uma equipa de voluntários, composta por alunos da Faculdade de Letras de Lisboa e que, de férias ou ao fim-de-semana iam fazendo intervenções no terreno, a fim de poderem retirar alguma informação. [...] Este movimento cíclico, de gente com outros hábitos e cultura que, de uma forma geral, não demonstrava o mínimo interesse em satisfazer a curiosidade das pessoas da terra, criou localmente uma certa estranheza, quando não uma quase completa indiferença.
Por isso, de muito cedo, logo nos primeiros anos, tentámos proceder de forma diferente. Desde os primeiros contactos com Mértola e por razões também de identificação política, sentimo-nos envolvidos na vida e interesses da comunidade. A escavação decorria no interior do aglomerado no local tido pelos habitantes como o seu ponto de referência colectiva, a sua alma comunitária - o castelo e toda a sua envolvência directa. Ao escavar no castelo, estávamos forçosamente a tocar no mais profundo da comunidade, despertando natural e inevitável curiosidade. No decorrer das primeiras campanhas, aprendemos a justificar o nosso trabalho, ouvindo os comentários e, sempre que possível, a encontrar consensos.
Cláudio Torres.
A Arqueologia, o Território e do Desenvolvimento Local
Seminário Efeitos sociais do património à escala local, Mértola, 27 a 28 de Abril de
2001 – Caderno de Resumos
Saída do anonimato, a vila de Mértola tem vindo a ser alvo de uma experiência que, embora alongada no tempo, permite já fazer um balanço positivo. Os benefícios têm vindo a tornar-se evidentes para a comunidade e os turistas que em número crescente nos visitam anualmente, têm a agradável surpresa de encontrar locais de interesse espalhados pelo interior do povoado e em circuitos culturais nas imediações.
A nossa intervenção em Mértola começou com a arqueologia, com uma arqueologia que, embora tivesse partido naturalmente de uma abordagem puramente universitária, muito cedo foi desviada para uma nova metodologia. Em Arqueologia Medieval o espaço de intervenção está sempre ou quase sempre contaminado pelos problemas sociais das comunidades ainda presentes na actualidade.
Até então, o programa contava apenas com o trabalho voluntário e sazonal de uma equipa de voluntários, composta por alunos da Faculdade de Letras de Lisboa e que, de férias ou ao fim-de-semana iam fazendo intervenções no terreno, a fim de poder retirar alguma informação. Posteriormente a esta recolha, necessariamente esporádica, os dados eram levados até à Universidade, para aí serem tratados. Deste modo era feita a investigação arqueológica, tendo sido na grande maioria dos casos, a prática comum e usual no nosso meio, uma vez que era a única forma de se conseguir um trabalho de investigação com um mínimo de financiamento.
A esta pendulação sazonal esteve, necessariamente, associado um certo clima de férias pouco favorável a consolidar um projecto de maior fôlego. A zona de intervenção ficava, ano após ano, abandonada, à espera da próxima campanha. Este movimento cíclico, de gente com outros hábitos e cultura que, de uma forma geral, não demonstrava o mínimo interesse em satisfazer a curiosidade das pessoas da terra, criou localmente, uma certa estranheza, quando não uma quase completa indiferença.
Por isso, de muito cedo, logo nos primeiros anos, tentámos proceder de forma diferente. Desde os primeiros contactos com Mértola e por razões também de identificação política, sentimo-nos envolvidos na vida e interesses da comunidade. A escavação decorria no interior do aglomerado no local tido pelos habitantes como o seu ponto de referência colectiva, a sua alma comunitária - o castelo e toda a sua envolvência directa.
Ao escavar no castelo, estávamos forçosamente a tocar no mais profundo da comunidade, despertando natural e inevitável curiosidade. No decorrer das primeiras campanhas, aprendemos a justificar o nosso trabalho, ouvindo os comentários e, sempre que possível, a encontrar consensos. A Câmara Municipal foi, desde o início, na figura do primeiro Presidente da Câmara eleito democraticamente, o grande intermediário e impulsionador deste projecto. Assim, com um Poder Local motivado, encontrámos estímulos para prosseguir numa aventura em que a Autarquia era não só um investidor, como um interveniente directamente envolvido. Deste forma passou a ser, na altura, um projecto pioneiro.
Mértola, muito embora sendo sede de concelho, é um pequeno povoado. Para o conhecimento da sua realidade, a sua escala humana tem vantagens, pese embora o controlo social, deveras rígido. Também aqui a participação de um grupo ou de uma equipa exterior à comunidade era muito importante. A chegada e instalação de uma equipa de alguns jovens universitários, durante um, dois ou três meses, para fazer escavações arqueológicas, implicava um esforço de inserção na comunidade, um esforço de adaptação e muitas vezes de renúncia a certos hábitos citadinos. O grupo era por vezes considerável e durante os primeiros anos, foi necessária uma preparação previa. Além de aprender a dominar as técnicas de escavação, as formas de intervenção, o aluno tinha de saber respeitar os hábitos e saberes da comunidade hospedeira. O que se diz, como se diz, como se está, até por vezes o que se veste, são actos que revelam a nossa atitude de respeito ou de desrespeito para com os habitantes - e, por isso, são elementos essenciais para uma boa integração. É fundamental conhecer e cumprir as regras de vivência em sociedade. Se as entendermos e por sua vez, as cumprirmos, seguramente que o nosso esforço de compreensão e acatamento será correspondido com igual esforço de aceitação por parte da população. E foi de facto o que aconteceu.
Outro aspecto interessante da nossa experiência residiu na intervenção arqueológica orientada de forma a tocar com cuidado nos pontos chave da memória colectiva.
Estávamos inseridos numa comunidade muito complexa. Uma vila com menos de 2000 habitantes e um concelho demasiadamente grande e de fraca produtividade, com uma centena de pequenos povoados em processo de empobrecimento e abandono. Durante as experiências de reforma agrária, no pós 25 de Abril, foi tentada uma forte colectivização das terras que tinham sido abandonadas pelos proprietários. Foi no rescaldo e ressaca deste período de grande entusiasmo cívico que foi iniciado o nosso trabalho de inventariação e intervenção no que restava de antigas memórias territoriais capazes de ajudar a manter vivas as solidariedades e o reticulado cultural.
Para sobreviver em Mértola, num pequeno povoado de interior, para aqui se fixar toda a nossa equipa, era necessária uma forte motivação pessoal e colectiva. Desde o início que a um entusiasmo de descoberta científica se aliaram claros objectivos de intervenção social e política. Desde o início fomos também motivados e de certa forma obrigados pelas circunstâncias e pela pressão dos círculos científicos universitários, a produzir um trabalho da mais alta qualidade. Apostámos na mais avançada investigação científica, por um lado, e por outro, numa alta qualidade divulgativa, quer através de publicações especializadas, quer na divulgação museológica em linguagem corrente, mas informativa e pedagógica. Apostámos nos elementos expositivos directos, ou seja, em exposições temporárias ou pequenos núcleos museológicos que explicassem construtivamente o trabalho em curso, a fim de envolver a população. Este esforço didáctico foi decisivo para o comprometimento do pequeno comércio no processo de arranque do turismo na região. Só desta forma é que conseguimos ter o privilégio de atrair a Mértola e à região, grupos de pessoas interessadas em visitar estes pequenos museus.
Efectivamente, só através do devido apoio e cumplicidade da Câmara Municipal é que foi possível tomar parte activa nos projectos, há muito idealizados. Destruídos os obstáculos e as burocracias foi possível criar uma Associação de Defesa do Património (ADPM), associação essa que contava com a participação das pessoas da terra, completamente autónoma da Autarquia e reconhecida como entidade de utilidade pública. Esta seria a única forma de atingir a total autonomia, quer no domínio financeiro, quer mesmo em relação aos poderes estatais.
A ajuda financeira da Autarquia, não podia ser mais do que simbólica, tendo-se reflectido no apoio logístico. A Associação, para sobreviver técnica e fisicamente, teve de apostar forte nos projectos nacionais e internacionais a fim de encontrar formas de financiamento.
Pouco a pouco fomos obrigados, desde muito cedo, a concorrer ao lado das universidades e em paralelo com outras e prestigiadas associações científicas. A partir de 1985 a Associação foi adquirindo força e credibilidade científica, começando por ganhar alguns concursos subsidiados pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT). A conquista de uma certa autonomia financeira permitiu ao Campo Arqueológico (CAM), entretanto autonomizado, lançar-se em voos mais largos e projectos mais ambiciosos.
A ADPM afirmava-se como Associação de Desenvolvimento e Defesa do Ambiente e o CAM especializava-se na investigação histórica e arqueológica. Embora com diferentes interlocutores e equipas complementares foi e continua a ser sempre possível e frutuoso coordenar o diálogo e a intervenção nas questões fundamentais do Património Natural Cultural.
Finalmente, um outro ponto de apoio deste projecto foi a aposta na componente formativa, na medida em que a questão do despovoamento e da desertificação do interior não passava só pela ausência de mão de obra, mas principalmente pela “fuga de cérebros”. A maioria das pessoas mais activas e dinâmicas já partira ou estava em vias de o fazer. Portanto a dificuldade em recrutar jovens interessados em participar no nosso projecto obrigou-nos, de certa forma, a criar uma escola profissional especializada que preparasse técnicos em arqueologia, museografia e turismo cultural.
Esta escola técnico-profissional funciona há vários anos tendo já formado algumas dezenas de jovens. A experiência foi tanto mais positiva quanto a um recrutamento local, tem vindo a acrescentar-se um interesse regional. De Castro Verde a Alcoutim e Beja, conseguimos criar uma pequena rede de jovens que acabam o 12º ano e que escolhem como vida futura, algo que os prenda à terra a que pertencem munindo-os ao mesmo tempo de um diploma credenciado e que lhes facilitará num futuro muito próximo poder vir a trabalhar na área que escolheram.
A par desta formação media que permite jogar forte nos jovens da terra, também arriscamos um curso superior de pós graduação em turismo cultural. Durante um ano formaram-se doze técnicos especializados, alguns dos quais contribuíram directamente para o desenvolvimento regional.
Actualmente apostamos na formação altamente especializada em pareceria com universidades, quer portuguesas, quer da Espanha e França a fim de encontrar potenciais alvos e interessados. Desta forma esperamos poder recuperar ou atrair a tal “massa cinzenta” que tem vindo a dispersar-se por outras paragens, criando-lhe novas e atraentes perspectivas de vida e de futuro.
O aspecto formativo era um ponto que sempre consideramos fundamental, o outro factor de base a desenvolver seria aprofundar o conhecimento do território, tentar entender o povoamento antigo e medieval, assim como a estrutura urbana de Mértola no período islâmico para poder inferir alguns dos vectores ainda hoje dominantes na malha viária e económica envolvente. Porque de facto não podemos ignorar a conjuntura histórica que envolveu o território e, de um modo geral, todo o Mediterrâneo Ocidental nos primórdios do mundo moderno. Economicamente, enfrentavam-se na Península ibérica da “Reconquista” dois sistema opostos. Por um lado a civilização mediterrânica de sistema tributário e do outro um sistema feudal, de estrutura mais hierarquizada e militarizada. Este embate entre os dois mundos não era porém o mesmo se travado nas cidades ou fora delas.
Intervindo directamente no subsolo do casco urbano de Mértola e recolhendo mais informações etno-arqueológicas, conseguimos também obter algumas indicações do que se estava a passar, por essa altura, no mundo rural. Desvendámos algumas dúvidas que estavam associadas à história das muitas vezes mitizadas invasões de berberes e árabes.
Assim, intervindo directamente no terreno compreendemos alguns tipos de povoamento, porquê mais concentrado em algumas zonas do que noutras. Ao fazer uma leitura toponímica da região desmontamos algumas ideias feitas, podendo aprofundar uma cumplicidade com a realidade do território em que a própria vila está inserida.
Como é normal, a nossa preocupação prioritária foi sempre poder intervir mais directamente no núcleo central da vila de Mértola, não só pela sua complexidade, como principalmente pelo pouco que ainda conhecemos do seu subsolo. Contudo, em colaboração com uma equipa de arqueólogos norte americanos com quem colaboramos vários anos foi possível consolidar os nossos conhecimentos sobre o meio rural. A partir das informações recolhidas pelos universitários de Novo México e Arizona, podemos cruzar e completar os primeiros indícios, começando gradualmente a tocar na chave mestra do território; não na chave antiga, histórica ou arqueológica, mas na chave do presente, de um presente que por estar tão próximo de nós se ignora ou menospreza.
Porque levantar arqueologicamente um território significa cruzar e relembrar os caminhos velhos, significa reconhecer as zonas antigas de cultivo e perceber as técnicas agrícolas, significa também tocar nas feridas, ainda abertas, de uma história local dramática para esta região em que as melhores terras passaram para as mãos de alguns poucos proprietários absentistas. Relembrar a campanha do trigo imposta no consulado
salazarista é compreender a razão pela qual não tem sido respeitada a biodiversidade destas terras empobrecidas. Todas estas informações foram sendo cotejadas com os dados arqueológicos recolhidos nas hortas e povoados abandonados. Aliás as lixeiras e restos alimentares, fornecendo sementes de legumes, cereais e gramíneas, ossos de aves, mamíferos e peixes, permitiu-nos conhecer parcialmente a dieta alimentar dos habitantes desta região no século XI e mesmo algo da sua composição arbórea e paisagista.
Por outro lado, ao estudarmos mais de perto o território apercebemo-nos que tem havido, no decorrer dos últimos tempos, uma interferência nefasta na estrutura da propriedade. A introdução e imposição, em terras esqueléticas de matriz mediterrânica, de uma agricultura oriunda das zonas húmidas do Norte, acaba por destruir este frágil ecossistema cultural encorajando o processo irreversível de desertificação dos solos.
No sentido de tentar inverter este processo e também conscientes da impossibilidade de separar o património natural do património cultural, conseguimos que as entidades governamentais decidissem a criação de um parque natural. É uma experiência recente e que só agora começa a dar os seus primeiros passos. Apesar de um excessivo centralismo pouco operacional e de certa forma desligado das organizações regionais, começa a fazer sentir-se a necessidade de uma gestão conjunta do território comprometendo os poderes autárquicos e as associações cívicas que no terreno têm sabido construir uma nova alternativa de desenvolvimento equilibrado e sustentado.